Autonomia financeira do Banco Central renova confronto com Lula

Autonomia financeira do Banco Central renova confronto com Lula



Após um ensaio de pacificação, na esteira de sucessivas quedas na taxa de juros, as relações entre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, tendem a se acirrar novamente. Desta vez, o pano de fundo é a proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê a autonomia financeira do BC.

Campos Neto tem empenhado esforços para fazer a medida andar no Senado Federal, enquanto o Lula e o PT não demonstram nenhum apreço pela ideia.

As negociações sobre o tema, iniciadas em janeiro, chegaram a ser interrompidas após reação contrária do Executivo. Uma reunião no dia 1.º de março entre Campos Neto e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, trouxe o assunto à tona e gerou constrangimentos.

Haddad negou ter conversado sobre a PEC, enquanto o presidente do BC admitiu ter tratado do tema, em entrevista à Folha de S.Paulo. Segundo fontes ligadas ao ministro, Haddad queria conversar primeiro com Lula e afinar o discurso.

Além do mal-estar estabelecido, as declarações de Campos Neto receberam ataques da presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), crítica contumaz da política de juros desde o início da gestão petista. Em sua conta no X (antigo Twitter), Hoffmann escreveu que a PEC da autonomia financeira vai “submeter o Brasil a uma ditadura monetária”.

BC já tem autonomia operacional desde 2021

O PT já havia se oposto à lei de autonomia operacional do Banco Central, sancionada em 2021 pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), que estabeleceu mandato de quatro anos para o presidente da instituição, não coincidente com o mandato do chefe do Executivo.

Desde então, a independência tem evitado a influência política do governo sobre a política monetária, como a pretendida pelo presidente Lula no início do mandato, que pressionou por uma queda mais rápida dos juros pelo BC. Foram inúmeras as críticas desferidas a Campos Neto, que Lula chamava pejorativamente de “cidadão”.

Com a interlocução do ministro Haddad e o corte gradual das taxas, conforme cronograma do BC, a animosidade foi arrefecendo e Campos Neto chegou a participar do churrasco de fim de ano no Palácio da Alvorada. Agora, com a perspectiva da nova PEC, os ares de entendimento parecem estar ficando no passado.

Proposta livra BC de subordinação ao Executivo

Caso a PEC seja aprovada, o BC passa a ser uma instituição de natureza especial com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira. Isso significa gerir um orçamento anual de R$ 4,14 bilhões, dos quais R$ 3,56 bilhões são referentes a gasto com pessoal e encargos sociais.

Sob o modelo proposto, o banco ficaria livre de subordinação hierárquica ao governo, com supervisão a cargo do Congresso Nacional, ponto de grande contrariedade palaciana.

Segundo Campos Neto, que tem adotado tom conciliador, o primeiro desenho da PEC foi elaborado dentro do BC e conta com a aprovação de todos os diretores, inclusive dos indicados por Lula. A ideia é convencer o governo sobre os benefícios do modelo, adotado na maioria dos bancos centrais autônomos no mundo. “É um passo no sentido de aprimorar o arcabouço de autonomia”, disse Campos Neto à Folha.

Quem propôs a PEC que está em discussão foi o senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), em novembro de 2023. Trata-se da PEC 65/2023, que conta com a assinatura de outros 41 senadores.

Quadro de carreira do BC é ponto crucial

Um dos principais objetivos da autonomia financeira seria reestruturar um plano de carreira dos funcionários do BC – vários têm sido contratados pela iniciativa privada por salários maiores, em consequência do desenvolvimento do setor financeiro no país nos últimos anos.

Campos Neto chegou a dizer que os quadros do banco estariam “derretendo”. Insatisfeitos com a proposta de reajuste de salários do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), os servidores fizeram uma paralisação de 48 horas em fevereiro, que teve adesão majoritária. Além disso, houve a entrega de cargos comissionados, como forma de esvaziar o comando da instituição, incluindo diretoria e gerências.

Desde o início das negociações, no ano passado, representantes sindicais criticam a ministra Esther Dweck, do MGI, pelo que classificam de inflexibilidade com as reivindicações da categoria.

Em 2023, depois de alguns anos de “congelamento”, os salários foram reajustados em 9%, como ocorreu com todos os servidores do Executivo Federal. Depois disso, o governo federal propôs um aumento de 23% para os funcionários do Banco Central, com o valor pago em duas parcelas nos anos de 2025 e 2026. A categoria, porém, quer um reajuste de 36%. As negociações continuam por meio da Mesa Temporária e Específica de Negociação, criada pelo Ministério da Gestão.

Para contemplar o assunto, a reestruturação de carreira no BC foi incluída na PEC pelo relator, o senador Plínio Valério (PSDB-AM). Caso seja aprovada, o BC terá liberdade para fazer seu plano de carreira e definir salários, preservando a estabilidade.

Autonomia financeira dá mais celeridade a políticas do BC

Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo acreditam que a implantação da autonomia financeira daria mais flexibilidade e agilidade ao BC no desenvolvimento de projetos e políticas.

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, diz que a autonomia financeira reduz os trâmites burocráticos e otimiza os resultados operacionais. “Você consegue tirar um pouco da limitação, do passo a passo para aprovação orçamentária dos projetos da instituição”, afirma.

No caso do BC, os exemplos são o Pix, já implantado, e o Drex, moeda virtual, ainda em implementação, além do “open finance” – sistema financeiro aberto, com compartilhamento de informações de clientes entre diferentes instituições autorizadas pelo BC, que permite movimentações bancárias a partir de diferentes plataformas.

Segundo a diretora da IFI, a literatura relacionada e análises de casos internacionais demonstram as vantagens de autonomia financeira de bancos centrais e autarquias federais. Ela cita o estudo Current Developments in Monetary and Financial Law (Desenvolvimento Atual do Direito Monetário e Financeiro), do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Num capítulo exclusivamente dedicado ao funcionamento dos bancos centrais, intitulado Central Bank Autonomy, Accountability, and Governance: Conceptual Framework (Autonomia, Responsabilidade e Governança do Banco Central: Estrutura Conceitual), o órgão recomenda o modelo e demonstra as vantagens da autonomia financeira das instituições.

Mauro Rochlin, coordenador do MBA de Gestão Estratégica e Econômica de Negócios da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ) acredita que a autonomia financeira vai exigir uma gestão mais comedida do BC em suas operações no mercado. Sobretudo nos derivativos, como o swap cambial, uma espécie de seguro contra a variação do dólar. “Hoje as eventuais perdas nessas operações são bancadas integralmente pelo Tesouro”, diz. “Com a autonomia, como vai ficar isso?”, questiona.

O BC também opera no mercado secundário de títulos públicos, normalmente para tentar influenciar a taxa de juro. “É outra situação em que o BC pode, eventualmente, perder dinheiro. A autonomia deve fazer o banco reduzir essa intervenção no mercado”, acredita Rochlin.

O governo não deixou claro se teme algum impacto fiscal ou qualquer outro efeito que justifique a resistência ao projeto. Especulou-se na imprensa que poderia haver alguma relação com o equilíbrio de forças dentro do Conselho Monetário Nacional (CMN), que estabelece as políticas monetárias, mas a PEC nada muda na sua composição. O CMN é integrado pelo presidente do BC e os ministros titulares da Fazenda e do Planejamento.

Segundo Rochlin, é natural que, para um governo de esquerda, faça mais sentido o BC não ter autonomia.

“Aliás, não faz sentido nem que o banco tenha independência para definir taxa de juros, já que, na visão deles [governo], o eleito foi o Poder Executivo”, afirma. “O que incomoda o governo é qualquer medida que tire sua prerrogativa conduzir a política monetária e o faça ficar ‘refém’ de um banco central independente”, completa.

Campos Neto se mostrou otimista com a perspectiva de negociação. Revelou ter garantido a Haddad que nada será feito “à revelia” dos interesses da Fazenda. “A nossa ideia é ter um texto que o governo apoie, que o Senado entenda que é um texto bom, e que seja bom para o Banco Central”, afirmou.



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