Jornalismo está despreparado para falar sobre a fé e os esportes – 10/08/2024 – Esporte

Jornalismo está despreparado para falar sobre a fé e os esportes – 10/08/2024 – Esporte


A cobertura de Paris-2024 tem demonstrado que quem escreve sobre esportes não entende quase nada da religião evangélica, crença preferida por ampla parcela dos brasileiros pobres. Isso é um problema, considerando o número de atletas –inclusive medalhistas– que são cristãos.

“Crentismo” foi o termo utilizado pelo jornalista Luís Augusto Símon (Menon), da revista Fórum, para abordar as convicções e atitudes religiosas da skatista Rayssa Leal e das judocas Larissa Pimenta e Odette Giufridda.

A questão central suscitada por ele é a seguinte: “Meu ponto é que a religiosidade extrema dos evangélicos serve como anulação do ser humano, de suas potencialidades e qualidades. O que adianta Rayssa Leal ter treinado se Deus decidiu que ela não teria prata como na última Olimpíada”.

Atribuir a Deus o êxito pela conquista da medalha –na linguagem da devoção evangélica “dar a glória a Deus”– seria “crentice”. Embora o jornalista não tenha dito explicitamente, está implícito que isso seria uma idiotice.

Mas será que atribuir a Deus o resultado de uma conquista ou de uma derrota significa que o atleta não tem consciência dos fatores físicos e técnicos envolvidos?

Secularidade absoluta ou crença cega são posições raramente encontradas no dia a dia das pessoas, como afirma Peter Berger no livro “Múltiplos Altares da Modernidade”. Os indivíduos transitam entre o discurso secular, que reconhece as causas humanas e históricas, e o discurso religioso que atribui a Deus sucesso ou derrota.

Rayssa, Larissa e Odette sabem que só estão nas Olimpíadas de Paris porque ralaram muito. Não é diferente com Rebeca Andrade, a estrela da ginástica. Todas elas atribuem o sucesso à combinação entre fé e treinamento árduo.

A mente do crente, ao contrário do que o jornalista sugere, não é cheia de “crentismo”. A crença religiosa, longe de anular as potencialidades e qualidades humanas, frequentemente funciona como um elemento que desperta e mantém a disciplina na vida pessoal e profissional.

O livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber, mostra que os primeiros empreendedores capitalistas não eram movidos apenas pelo desejo de enriquecer ou conquistar a fama. Eles eram motivados, segundo Weber, pelo desejo de glorificar a Deus por meio do trabalho.

Trabalhar arduamente, guardar dinheiro e usar o tempo do modo mais produtivo possível, comportamentos racionais típicos desses primeiros capitalistas, eram inseparáveis da religiosidade deles. Crença religiosa e conduta racional, além de serem compatíveis, costumam andar de mãos dadas.

A disciplina racional que ajudou a construir o mundo moderno nasceu na ética protestante daqueles que, como Rayssa, Larissa, Odette e Rebeca, tinham em mente que viviam para dar glória a Deus.

Quando atletas cristãos atribuem suas conquistas a Deus, não significa que estejam se autodesprezando. O conceito de divindade que anima essa espiritualidade evangélica não é de um ser celestial que exige que seus súditos se anulem e massageiem seu ego o todo tempo. Trata-se mais do vínculo de reciprocidade estabelecido numa relação entre pai e filhos. O atleta pensa: Deus me deu a vida, a saúde e o talento, portanto, é justo que eu reconheça a participação dele nas minhas conquistas.

Por fim, o jornalista Menon afirma: “Eu sou uma pessoa sem religião, mas respeito todas. Não dou dinheiro a crente e não invado terreiros onde se prática religião afro-brasileira”. Enquadrar as expressões religiosas das atletas olímpicas nos estereótipos de que todo crente é explorado financeiramente pelos pastores e intolerante com as religiões de matriz africana, como ele faz, não soa nem um pouco respeitoso com a religião evangélica.

Eu não sou ateu, mas gosto de ler obras de alguns ateus. Dos antigos, Friedrich Nietzsche, dos contemporâneos, Alain de Botton. Crente que sou, jamais me atreveria a opinar sobre como deve se comportar um ateu quanto ao seu grau de ateísmo. No máximo, quando converso com ateus, gosto de lembrar Nietzsche: “… ó Zaratustra, tu és mais devoto do que acreditas, com uma tal descrença! Foi algum Deus em ti que te converteu a teu ateísmo”.



Fonte: Folha

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